quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O nome do livro: Ultrajes na Guerra Colonial


Eu, um puto de vinte verdes anos, acabado de sair da Escola, nada sabia da vida a não ser um pouco de Contabilidade e algum Cálculo Comercial.
E dava para quê?!
Na tropa, Alguém Superior me safou... houve infortúnios, pois!
Quando um homem tem força de vontade os deuses dão uma ajuda e no dia que ali entrei, prometi, jurei aos meus redondinhos botões viver com os pés na terra, nunca na história e vontade não faltava. Desejava sair vivo se batesse em África e o diabo assim quis e assim andei amargurado numa ex-colónia.
O poder político, de má memória, chamava-lhes pomposamente “províncias do ultramar”. Safados!
Paupérrima aquela para onde fui; onde mandava a miséria, onde mortal algum passou um dia sem sofrer.
...
Leiam-me e verão como milhares de jovens, que serviram nas Forças Armadas, foram humilhados, caluniados e vexados e tão desonestamente mal tratados. Tudo começava neste viçoso recanto da Europa onde oficiais e sargentos milicianos não escapuliam.
...
Os praças?! Coitados! Melhor, é nem falar...
Ultrajes, desfeitas senti durante o tempo em que enverguei a farda. Não só a vesti, fui forçado a fazê-lo mas, com brio e cavalheirismo inexprimíveis vos assevero que a não desrespeitei.
Dobrado ultraje sofri com a independência das ex-colónias. Exemplar, se lhes chamou e há quem apelide...
...ainda?!
Cruel guerra civil matou por anos mais; negra fome passou a matar também. Exemplar, em quê?! Vão bugiar!
Pudessem murmurar os militares ali tombados! Em memória deles; em nome dos que regressaram sãos, escorreitos, mas nem todos, as minhas recordações:

“Reminiscências de um furriel de cavalaria”



Livro que dedico à minha eterna namorada e aos nossos filhos; à minha tia e madrinha de quem tanto gosto e mo pediu e a todos vós que lutaste e sofrestes naquela estúpida guerra.


domingo, 15 de fevereiro de 2009

Lembro-me

O Marão, todo ele tiritava de frio, estava lindo e tudo ao redor era branco. Lá ao fundo, no vale, a neve tombava em grandes farrapos enquanto toda a Campeã ainda dormia debaixo do aconchego dos telhados de lousa naquele difícil romper do dia. Em Aveçãozinho, acanhada aldeia de entre as demais que amoldam aquela freguesia, uma casa fumaçava já. Na lareira desmedidos potes de ferro amornavam água e toda a cozinha cheirava a fumo onde a azáfama era já uma verdade. A patroa da casa, a dona Amelinha, estava em trabalho de parto e a criadagem ainda ensonada, ajudava em tudo o quanto era possível.

O Zé Diogo, criado de lavoura, galantes dezanove anos, atarracado, gorducho, cara rosada e alheio ao peso fatigante dos seus tamancos, corria a buscar lenha e cântaros de água à fonte que não distava longe.

A Cândida, criada débil e um tudo-nada mais nova, com ligeireza assoprava ao lume onde ardiam rama e achas de pinheiro que faziam mais fumo do que fogo.

O patrão, o senhor Armandinho, homem afoito que tudo sabia fazer, e até fazia, andava de cá para lá num corrupio dando ordens e preparando-se para assistir a mulher. Naqueles tempos não havia parteiras e os desviados hospitais também não estavam assim tão capazes para aquelas lides. Nascer, era naqueles tempos ainda uma excelente aventura!

O Carlos e a Lígia, os dois filhos da casa, dormiam um sono inocente e nem suspeitavam sequer que a cegonha ia chegar no alvorecer daquele dia de medonho frio, para lhes trazer um irmão ou uma irmã; aquela sabida incógnita!

As coisas pioravam e a criada foi mandada numa pressa a sua casa, que também não era longe, para que a sua mãe viesse auxiliar, já que era a habilidosa do sítio que desde sempre tivera por missão acudir às grávidas e ajudá-las a libertarem-se das suas crias.

No caminho, escanzelado lobo devaneava na Eira da Praça, ali por perto da fonte, mas a rapariga, que ia na obrigação de trazer um rápido socorro, não se atemorizou e, porque discorreu que de um cão se tratava, apanhou uma pedra e afoitamente atirou-lha. Estugou o passo e rompeu adiante continuando a marcar com as suas socas a imaculada neve só se apercebendo da realidade quando o Jaime, homem vizinho e madrugador que passava, gritou: “é lobo! É lobo!”

Minutos depois entraram precipitadas a criada e atrás a mãe com cara de dormir e muita remela. Era urgência; o inocente porfiava em nascer...

Não tardou que emergiu um fedelho e, como o quarto estava frio, ele ainda se recorda de ter chorado logo que nasceu. Depois, enquanto a senhora Maria que ajudada pela filha lhe dava banho, berrou para o pai e para a mãe que não cabiam em si de felicidade por um filho tão lindo.

...

Vinte anos depois fui para a tropa.

Camarada e amigo ex combatente da guerra do ultramar

Baseado num diário que fiz durante a minha vida militar escrevi um livro que te dedico.
Neste blog irei escrever passagens que gostaria de partilhar com quantos naquela estúpida guerra sofreram.

Esta história também é tua.