sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Quando eu tinha doze anos. Sim. Escassa dúzia deles. Num mês que também era de Janeiro. Penso.

Na aldeia uma idosa faleceu.

Poucos serão os dias em que não me lembro dela...


“A madrinha:”

A saudade continua a visitar-me à distância de mais de meio século. Na penumbra do tempo vejo uma velha tia da minha mãe.

Solteirona. Pequerrucha. Cara ressequida. Vincada por rugas intensas. Olhos pequeninos.

Verdes.

Apagados pela idade e tomados de paixão por um Senhor Jesus Cristo, sempre vivo no Sacrário.

A beata de grandes sorrisos tinha uma voz seca e sumida. Como se a todo o instante fosse comungar.

A tia Margarida morava numa casa pequenina.

Árida.

No cimo duma aldeia da Campeã.

Todos os dias descia. Visitava-nos nos seus vagares.

Naquele Marão grande até já as pedras do caminho lhe conheciam o tropear das rompidas socas.

Briosa. Num bolso de avental arrecadava eternamente côdeas de pão de milho.

Não tinha dentes para elas.

Com as côdeas mimoseava garotos descalços.

Sujos.

Canalha que descobria na passagem. A miséria coabitava com todos.

Em nossa casa o afecto levava-nos a chamá-la de “madrinha”.

Por quê?!

Não sei.

Sei só que ela não era madrinha de ninguém.

Sua sobrinha. Minha mãe sempre lhe oferecia algum mimo. Por eleição coisa que fosse doce.

A formiguinha também nunca torceu a cara a um bom copo cheio de vinho.

Tinto.

Meio de açúcar.

Mas dava gosto vê-la de boca aberta. Copo empinado. Esperando pacientemente que a guloseima se deixasse escorrer...

Fungava depois:

Do que mais gosto... lambia-se... é da última pinga de “açucre”.

Até amanhã!... ajuntava.

Ia saindo de olhos esperançosos pousados no copo ressequido.

Afundava a mão na algibeira.

Já sem côdeas.

Arrancava-lhe um rosário.

– De contas feitas de caroços de azeitonas. Polidas por ossudos dedos –

Com medalhas de figuras de Santos nele presas.

...

Talvez rezasse já pelo próximo copo de briol.

Desejaria perduravelmente escorropichar mais um derradeiro trago de “açucre”.

...

Assim a sua sequiosa crença lho impingia.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Meus amigos:

O Natal está ainda ao alcance da palma da mão e já estou com muitas saudades dele.
Sempre gostei do Natal e, quando comecei a pensar que ia deixar de gostar dele, chegou-me uma nova paixão pela festiva quadra e agora gozo o "gozo" dos meus netos com ele.

Da minha autoria:
Natal
Quando cheguei, guiado por estrela,
Tive pena do menino que lá vi.
Naquela noite de deleito... bela!
Chorava com frio, que também senti.

Tremeu a luz saída duma vela.
Voz, disse: “Eis o rei do mundo”... ouvi.
Jovem mãe brilhou... mas que donzela!
O Menino alegrou-se e eu sorri.

Faustoso, por terra caí prostrado,
Feliz, por S. José fui abraçado,
Satisfeito, no Menino beijo pus.

Foi naquele sacro Natal, qual deleito!
Milagre vivo ainda no meu peito,
Que me beijou ainda a mãe de Jesus.


Um santo dia de Reis para quem me lê e um bom Ano.

Abraços


sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Pausa. Grande pausa e agora, que chegou o novo ano, juro-vos que a perguiça se foi.
Aos meus amigos leitores desejo um ano com muita saúde, alegrias e ...
curiosidade bastante para vir aqui espreitar o meu blog.

Cá estou para vos adiantar um pouco da minha história:

Nhamate


Bula, 12 de Setembro, domingo


Casmurra coluna militar, apoiada por seis possantes carros de combate “Panhard,” alguns resolutos unimogs apinhados de soldados robustamente armados, umas quantas barliets, da Companhia de Transportes, com víveres e uma vintena de camionetas civis, manhãzinha, cedo, após ter sido dada a picada como “limpa” e que havia “roda livre,” saiu de Bula, com o inflexível propósito de chegar a Nhamate, arrastando-me com os meus soldados, para lá nos abandonar como reforço da Companhia de Artilharia, conhecida como “Ferrobico”.

Muitos buracos e pó e lama foi tudo quanto topámos. A picada, aquela asna, estava medonha!

Nutrido de tensão e sentado num unimog, de cinturão empanturrado de cartucheiras e obesas granadas, de metralhadora entre pernas em posição de fogo e o dedo esperto e precavido a tanger o gatilho, lá ia eu de imbecis e escancarados olhos fitos no pardacento mato. Lembro-me, o tempo não me funde as sombras na memória, aquilo eram lances de caça. A paisagem remoçava-se, repetia-se morosa e o avançar tornava-se penoso e cruel e nós, vulneráveis, soletrávamos o medo do sangue. A morte espreitava-nos a todo o momento...

Bem sei, bem sei que escrever deste jeito será sempre uma maneira de colorir, ou disfarçar o pânico, que era aquilo que nos perseguia. Sim, o que nos borrava! Bem percebo que escrever deste modo será sempre uma forma de alumiar o medo, que senti sob a luz cansada que rompia o capim cerrado, naquela espécie de noite parda que me dormia pelo corpo adentro. Compreendo que fui continuadamente olhando os sons que a trabalhosa coluna pintava e revivo que, perante os tão eminentes perigos, não me foi permitido sonhar. Tornei-me frágil e humano, enquanto que ao longo da picada, abandonando a mata, apareciam soldados que tinham partido antes do nascer do dia para nos afiançarem segurança. Eles tinham feito a picagem esgaravatando em busca de minas, que por acaso o inferior inimigo tivesse por ali dissimulado num infame jogo de misérias enganador. Só depois do esmiuçado trabalho nos foi dito que a picada estava “limpa” e havia “roda livre”. Recebemos ordens para avançar... era suposto não haver minas...

Ao meu lado ia um furriel que rendemos e me acompanhou até ao atribulado destino. O Joaquim, foi-me explanando o desdobrar da estafante e arriscada viagem; falou-me dos locais – consequências desastradas – por onde nos afoitávamos. Naquela coluna partilhávamos tudo: os medos, os perigos e o pó e não queríamos repartir o combate, ainda que por um triunfo se viesse a saldar. Roçávamos pelas barbas do inimigo e éramos velas naquela negra noite de piche incendiadas.

O Joaquim, ergueu o braço e, de indicador delicado, apontou o que chamou “lugar da placa”. Arregalou os olhos, esfregou-se no meu ouvido e depois gritou além do fragor dos camiões: “cuidado, ao passar por aqui!... perto, os “turras” têm acampamentos, mas poucos de nós têm lá chegado... às vezes são eles que vêm!”... depois, alteou o cu, debruçou-se sobre mim e berrou mais ainda, para que me não escapasse: “aqui é sítio para embrulhar!!!

O calor batia-me com violência quando parámos em Binar, estéril povoação a meio do caminho, aonde ficou fatia da coluna para abastecer um quartel mal parido e nós porfiámos teimosamente picada além, num avanço moroso e atroz, antes que fosse porventura tarde.

Adiante, aonde o perigo era maior, o Joaquim apontou uma colossal cratera, feita por uma mina que, menos de um mês antes, ceifara uma Panhard – 15 de Agosto de 1971 – e cuja tripulação, comandada pelo furriel Valter Pastor, que nós fomos render, dali escapou aturdida mas ilesa.

Há homens com tanta sorte!

Mais além, o Joaquim, aludindo à “curva do lobo” – local de terrível fama e mal desenhado pela natureza – instigou que, sempre que por ali fosse, tivesse cautela. Senti a energia da emoção, cuspi forte nas mãos e, com raiva!... esfreguei-as. Ah, caramba! Bradei depois.

Bem sei que aquela curva sinistra, ou talvez um território de sangue, se recurvava ameaçadora e muito estreita. Divisei que a ronceira coluna ali adormecia, expondo-se a uma fatal emboscada e atentei ainda que não passava de um enlameado carreiro, aonde os veículos derrapavam à medida que, com impaciência, os pneus se queriam filar na terra ardilosa. Vi que tudo aquilo era enorme resistência, por si só difícil de vencer. Ali as estúpidas rodas traseiras atolavam-se. Em grandes sorvos, os cegos motores bramiam roucos, aquecendo o ar por si já quente que me sobrevoava a pele e, furibundo, o suor escorria-me muito sujo...

Olha para ti, Leonel. Metes nojo!... falei assim para a minha alma.

Mais além, o Joaquim apontou o “canal da bazuca” – sítio malparecido, de nebulosa mata e seculares árvores de troncos rugosos e com décadas de profissão na arte de fabricar medos e sombras –. Ali, o capim matreiro vinha forjando hábil túnel que, maçador, quase nos arrebunhava os rostos imundos e a segurança era fortuita, talvez imaginária, onde algumas vezes a nossa tropa levou muito a sério nos cornos.

Para debelarmos uma vintena de bicudos quilómetros a coluna surripiou crescidas horas à minha airosa mocidade. Ao Estado bebeu centenas de litros de gasolina, e só lhe não gastou balas porque o diabo andava mesmo desatento.

Foi sobre aquele rebuliço de estremecida viagem, quando o sol mais queimava no vasto céu de África, que impiedosamente me atiraram para aquele canto, no mais perigoso e arriscado dos ofícios. Ali me botaram com um punhado de negros soldados vis e um malicioso soldado branco de merda e, porque não era visivelmente aquela a minha vocação, ali fiquei a roer as unhas até ao sabugo, enquanto a coluna tornou a Bula, sem que me não tenha antes despedido, com um estreitado abraço que me torturou o coração, do cortês que me patrocinou e me deixava em maus lençóis, naquela que era a mais violenta guerra que Portugal sofria em diversas frentes. Mas ele ia regressar à Metrópole.

Que inveja!

A Companhia do “Ferrobico,” reputada na Guiné – ali brotou a frase: “siga a marinha” – decompunha-se por destacamentos: Changue, e a ténue picada ia, levando a Unche, que bebia no rio Mansoa e, por distinto e enganoso atalho, arribava-se a Manga.

Até pouco antes da minha chegada, a Companhia dali teve como comandante o capitão Gaspar e foi aquele famoso que, já “apanhado pelo clima,” arrogou defrontar as gordas patentes de Bissau, rabiscando com a cegueira das suas mãos que, por causa das chuvas, não havia condições para se puder espigar no seu indefeso e quase submerso quartel, finalizando com ironia: “siga a marinha!” O recado tresmalhou-se até à rádio e no “PIFAS,” programa de informação das forças armadas, escutado por milhares, foi difundido ao ponto cómico de todos exclamarem, por tudo e por nada: “siga a marinha!”

Foi o incómodo capitão entrementes promovido e era o então major Gaspar nos consoláveis gabinetes de Bissau.

Viva o luxo!

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Bissau, 7 de Setembro, terça-feira

Carregando as trouxas, pulámos para os camiões da Companhia de Transportes e deixámos que nos arrastassem para o nosso insondável destino. Fomos levados para um itinerário de desgraças; íamos desarmados, o que nos causou algum descontentamento e um amuo generalizado.

Percorridos uns trinta quilómetros, num sítio rude e empoeirado, chamado João Landim, aonde havia só um tímido e degradado destacamento da marinha, qual entorpecido bairro de velhas latas e quando o sol ainda muito nos malhava em cima, atravessámos de jangada um largo rio. O Mansoa, assim se chamava aquele, fruía de marés; era um braço de mar e naquele insípido quase fim de tarde, quando o ar estava parado, húmido e morno, escarnecia arrogante na sua maré-alta.

Logo que chegados a terra na outra banda... na margem do sofrimento... mal as jangadas se tinham aliviado das aborrecidas cargas, arrebentou repentino e forte tiroteio, ouviram-se rajadas de metralhadoras e morteiradas reboavam também em selvagens explosões. Naquele lugar desolado não aparecia abrigo; era desterro profundo... nem árvores havia tão-pouco. Sobrevinha apenas a rampa em cimento de acesso às jangadas e ao redor havia a “bolanha,” que era lama, mais lama... muita lama pegajosa a perder de vista. Por ali não vi sítio que servisse de refúgio e muitos dos meus camaradas afocinharam. Num arranco de consciência e tolhido por uma mescla de dúvidas, agachei-me junto dum pneu dum camião. Era desmedida a verdura da minha mocidade e só por isso não saí de lá borrado, como a maioria daqueles infelizes. Aparvalhados, só depois apreendemos que se tratava de um tradição. Os militares velhinhos, que nós íamos render, assomaram lá ao longe e aos molhos, no meio de jumentas gargalhadas. Aos “atacantes” podia-se-lhes ver nos rotos retratada a alegria pela nossa chegada. Nós íamos rendê-los. Éramos o favor dos céus que divagaram durante mais de dois vagarosos anos. Correram para nós e todos abraçavam... hum!... que fantasia! Estávamos defronte deles apavorados, era certo, mas estávamos... e era o que mais os deleitava. Por isso os olhos se lhes riam de júbilo, enquanto a qualquer um de nós, cada qual mais espavorido e boquiaberto, não cabia um feijão no cu. Honestamente, falo por mim. Os meus olhos deveriam estar ainda cheios de resignação e o pavor tinha-os ultrapassado. Se fosse capaz de fazer o tempo voltar para trás, ia à caça com a espingarda de pressão de ar que deixei na minha arredada aldeia. Recordei ainda com tristeza a fisga que, anos antes, enjeitei no sótão da casa dos meus velhotes... o meu convento de saudades...

Tudo não passou de zombaria. Se assim não fosse não estava hoje no vosso reino, ó vivos. Talvez nem a morte me tivesse doído mas, sem estremecer, apresentar me ia limpo diante de S. Pedro, valha-me ao menos isso!

Não é que nós não fossemos audazes. Os nossos vinte anos faziam-nos imortais e destemidos militares, mas como abalámos de Bissau sem uma só arma... Era assim, apurei mais tarde. Nas ruas de Bissau e entre Bissau e João Landim, passando por Safim, não se viam armas, só que ninguém sabia do detalhe.

Consertados do susto teimámos na viagem com firme escolta militar. Havia meia dúzia de pujantes carros de combate Panhard, muitos militares com metralhadoras e bazucas e morteiros não escasseavam ali também. Por uma dúzia de quilómetros a coluna rodou em útil cadência e sempre em estrada alcatroada, até que parou. Recebemos ordens para apear, quando à nossa volta havia só mato e velhas árvores assustadoras e frondosas e quando também o sol abaixava meio apagado e triste no ocaso enquanto que, com cómica pressa, o crepúsculo se anunciava. Tínhamos que avançar com cautela, em duas filas pela berma da estrada, até ao que seria o nosso quartel. Que também não era sabido quando adviriam as viaturas, por isso que cada qual levasse o que lhe pudesse vir a fazer falta, nos dias chegados.

Vi camaradas a carregar todas as malas num zelo sobre-humano enquanto para mim dizia: “a única coisa que me irá fazer falta é só a máquina de barbear”. Assim ajuizei e fiz, roubando ao saco uma velhinha Philishave de duas cabeças e meti pé ao caminho, sem saber tão-pouco se por lá haveria, ou não, electricidade.

Um camarada que conheci no embarque e companheiro de camarote, o Xico, assim chamava ao furriel rádio-montador, acirrou-me para que levasse algo mais e não deixou de me lembrar que as malas, que soltava à sua sorte, poderiam até sumir. Não me persuadiu e não me apeteceu levar nada e depois era eu quem mais ajudava o Xico a carregar o pesado espólio.

Sempre de atalaia, andámos centenas de metros. A estrada de piche, parva e ardente, fez patética curva para a direita e além avistou-se o aquartelamento. No mesmíssimo instante devolvi ao Xico os seus pertences.

Foi brincadeira dos velhos que nos forçaram a palmilhar o meio quilómetro final. Enquanto que nem velhas mulas todos os camaradas gemiam com as suas brutais cargas, estuguei depois o passo e, quando eram cinco da tarde, quase noite na Guiné e já se via a luz fria do luar, fui o primeiro desditoso a vencer o ferrugento arame farpado do quartel.


Bula

Na porta de armas, os “periquitos,” assim se apelidavam os recém-chegados, fomos coagidos a pular uma barreira improvisada com troncos de palmeiras.

Os que nos esperavam e os que nos escoltaram – do Esquadrão 2641 – amontoando-se em cachos à nossa volta, emitiam pios e gritavam: “salta periquito!”... tudo no meio de muita balbúrdia, assobios, gargalhadas espalhafatosas e intensas palmas que vertiam alegria. Pulámos e como fui o que ali chegou mais leve, fui o primeiro dos desditosos a calcar o chão daquele agora nosso quartel, que me deu tristeza conhecer. Aquilo era uma triste mão-cheia de barracas de lata. Desejei ver-me longe daquele sítio. Só mesmo Deus sabia o que nos tinha aprontado.

“Vi a miséria do meu povo”. Êxodo 3, 7.

À noite houve festa. E por quê?! Só, porque quem a teceu tinha quem o revezasse, podendo esgueirar-se daquele desumano infortúnio e assim a falsidade alcançou vida própria. Eu não sarava a minha dor!... e os “velhinhos” mostravam sorrisos maliciosos...

Ah!... Como sempre, continuava distraído e só mais tarde percebi que no bar – com mesas e cadeiras feitas de aduelas de pipos – oficiais e sargentos, novos e velhos, pelas razões erradas, vazavam whiskies. Estremecido pelo sedento desejo de apreciar um, abeirei-me do balcão e ao militar ali de serviço questionei quanto custava. O Lopes disse, “vinte e cinco tostões,” deitou a mão a um copo e não deixando nunca de me fixar, arrastadamente, alcançou uma garrafa de Dimple. Soltei uns momentos e ordenei que ali afundasse gelo e whiskies e que os contasse, até eu dizer, “alto” – depois eu havia de me confessar. Acatou e não perdeu o tino à conta. Quando extravasava, gritei, alçou a garrafa, contou onze e acrescentou: “foda-se!... cuidei que ia verter”. Com mãos piedosas esvaziei-os de um trago só. Era um pouco forte, molhada tosse irrompeu breve, mas gostei do paladar e recolhi-me depois num quarto sobrelotado, embusteando com pálpebras ansiosas um cerrado e bêbado sono, até ao alvorecer.

No dia próximo atribuíram-me duas mãos-cheias de soldados pretos, que Deus todo-poderoso tinha feito à sua imagem e semelhança. Ah!... mas Deus fê-los à pressa; todos toscos e rudes, selvagens e muito brutos e sem a menor perfeição nos acabamentos. Deus até se esqueceu, vá lá saber-se por quê, de os pintar, deixando-os carecidos numa descontente tinta de aparelho. Deram-me ainda um díspar soldado branco que assentou praça na Guiné – e ele foi “o meu cabo dos trabalhos”. Um espertalhão que me queria ultrapassar...

Os pretos, eleitos de entre os mais bêbedos, foram-me dados porque era o eterno furriel mais novo e por essa causa cruel – e porque me não era possível lidar com o futuro – ia ser destacado para reforçar uma companhia de artilheiros, ainda mais tristemente perdida no mato.

O meu amor estava do lado de fora e o diabo, que não dormia, teimava em perseguir-me...

O capitão Ruben, a meio da sua comissão de serviço e comandante da minha Unidade, teve a lisura de me prevenir que os pretos, com que me brindava, eram do piorio e o branco era mais rasca do que todos os pretos juntos. Aconselhou-me cautelas com todos e prudência com a peste do soldado branco; obra de um deus mau e distraído que nem de preto o pintou sequer. Aspirou-me sorte e ajuntou que aquela escória, indo comigo, o deixava sossegado por um excelso mês.

A escala de serviço voltou ao início; ou melhor: jamais passou além de mim e eu tornei a lastimar-me por ser o imperecível furriel mais novo e também caixote do lixo daquela ralé. A minha lanterna estava a ficar sem azeite e a minha alma sujou-se na bosta. Desmoralizações, tive-as terríveis! Não me era permitido resistir e eu não me queria render. Era de mais! Porra! Repontei baixinho, não fosse alguém ouvir. Eu, outra vez?!... será que não há outros palermas neste quartel e não haverá mais ninguém para pôr à prova?! Assim, só podia continuar a olhar para um perpétuo vazio, mais alheado de uma cada vez menos crível margem de alegria e nem sequer podia desembuchar.

O Ruben transmitiu ainda, valha-me ao menos, que de entre aqueles de etnia balanta e ordinários negros – outro ultraje – havia um de etnia fula, o Mussá Candé, muçulmano que não bebia... um mimo para mim.

Não era nenhum jovem tolo, mas estavam querendo fazer-me chanfrado. Ah, meu Deus! meu Deus!

Ao outro dia fomos ao Batalhão, quartel adjacente e de quem éramos subordinados, aonde nos apresentámos. Precavido, porque adivinhava que ali vinham sacrifícios, privações, cuidados, canseiras, chuvas, calores, suores e medos, tomei as minhas medidas e exigi arma e cartucheiras, carregadores e munições e bastantes granadas de mão.

Pudera! Brincávamos, não?!

Perdi o interesse pela comida e não jantei.

Rente à noitinha, na parada, alumiada pela frouxa claridade das estrelas e pela luz branca de uma lua quase cheia, conversava com dois militares que tinham chegado comigo e ouviram-se, quase em simultâneo, três aterradoras explosões. Todo o chão tremeu de medo debaixo dos meus pés e um, o Cunha, gritou com terror:

-Eles, aí estão!!!

Cavámos e eu no sentido contrário ao de ambos e foi então que o Bastos se deteve, me lançou um olhar terrífico e berrou:

-Por aqui, furriel!!!

Retrocedi, aliando todas as minhas forças, e juntei-me a eles que se resguardavam já nas traseiras da cantina, onde havia duas ou três toscas mesas e bidões cheios de terra, que serviam de conchego. Afundamo-nos naquele lugar precário para a morte, enquanto os rebentamentos se repetiam numa vasta e dolorosa música.

Curto sossego das bombas... ouvi serenas conversas... espreitei e vi meia dúzia de soldados pretos que, tranquilos, conversavam e comiam. Eu estava incrédulo! Angustiado, perguntei-lhes se não tinham ouvido explosões e eles, muito serenos, riram-se, encolheram os ombros e um falou: “furiel,” (com um só r) ser obus dos Batalhão, estar bater os zona”. Supliquei-lhes que se refugiassem, mas riram em subidas gargalhadas e, num enorme alarido e de braços abertos, disseram em uníssono, numa incómoda lenha das palavras: “não ser os guera! ... não ser os guera!”... enfim! mergulharam depois as mãos nas fundas malgas e duraram a refeição naquelas estranhas e afras formas de cortar a fome.

Rezei aos santinhos todos da capela da minha aldeia e da minha devoção, pensei nas flores do jardim da minha casa e nas ocasiões do silêncio que agora não tinha. Eu estava vulnerável às imparciais e frígidas armas de aço e vi ali os meus “outroras” perdidos.

Procurando a todo o trecho esconder os nossos medos e fragilidades, tornámos vagarosos e desconfiados à parada.


terça-feira, 6 de outubro de 2009

Meus caros:
O tempo nunca andou tão veloz, quanto agora. Parece ter sido ontem e já lá vai um mês que nada escrevi para vós.
Perdoais-me?
É com dificuldade que acredito que sim. Sois fantásticos!

Guiné

Bissau, 4 de Setembro

Aguentava comigo um sentimento, para o qual não existem palavras, que sobre mim se debruçou e se apoderou do meu desafortunado espírito, mas dando concisos passos no cais, encontrei o furriel Luís; aquele que foi o divertido primeiro-cabo miliciano madeirense, do pelotão das Caldas da Rainha. Com ele, chegado dias antes, estive alguns minutos e, tê-lo encontrado, deu-me um tudo-nada de alento.

Camiões levaram-nos para o Quartel de Adidos, onde abandonei as tralhas numa tenda de campanha e soube que estava ali de Sargento de Dia. Filaram-me outra vez! A ideia de ser o imutável furriel mais novo começava a enfadar-me. Depois de oito dias continuados de serviço voltava a ser o primeiro na escala. E os outros?! Perguntei aborrecido ao tenente Aparício, oficial da nossa Unidade. “No barco foi uma coisa, aqui é outra”, foi a luzidia resposta que ainda hoje me atroa nos ouvidos. Quem me dera ter naquele momento um alfinete com que lhe pudesse espetar o snobismo... Furava-lho bem furado... ai, isso furava! Não me compete atacá-lo, nem defendê-lo e muito menos julgá-lo, mas o sorna e parasita nem tão-pouco se deu ao “árduo” trabalho de saber quem era o pateta seguinte na lista dos desditosos. Não achei piada nenhuma à merda da brincadeira.

Se é verdade que a maior parte das pessoas desculpa os erros de quem seja simpático, neste particular não achava aquele oficial, naquela época, minimamente agradável e, como se isso não bastasse, tinha que dormir no chão com centenas de mosquitos que me ruminavam a paciência. Aqueles, zoavam-me incessantemente aos ouvidos chupando-me o sangue fresco. Para arrelia, e meu grande desespero, provocavam-me borbulhas, que coçava, e quanto mais coçava... mais coçava... e muito mais ainda apetecia coçar. Era sofredor!

Nos Adidos, levar uma vida fácil era tarefa difícil, mas que importava ao tenente Aparício o meu mal-estar? Não é verdade que pimenta no cu dos outros é refresco?! Cometer uma injustiça é mais desonroso do que sofrê-la. Comecei a pensar seriamente que a minha vida era já uma grande aventura, mas tenho o dever de avisar que, “aventura” era a designação romântica que encontrei para “problemas”.

Tacteei no bolso o baralho, furtei-lhe carta: “liberta-te do peso das tuas duras mágoas e sabe perdoar. O perdão é catalisador que cria ambiência para nova partida, para um reinício. Se caíres sete vezes...” A carta sabia; tinha que dar ao meu oficial o benefício da dúvida e parti lesto para tomar conta do serviço.

Que remédio!

Meu caro: a vida é uma questão de riso e rir foi coisa que nunca deixei de fazer. Nos Adidos, onde fui impiedosamente picado pelo meu oficial e pelos mosquitos que não me davam paz, ri vezes sem conta sempre que esborrachava um daqueles insectos, e matei centenas. Quantos mais matava mais me ria... ouso dizer que me sentia mais feliz. Cada mosquito morto, por aquelas noites adentro, era uma nova alegria para mim e cada alegria sentida fazia dissipar cem tristezas. Imagine o quanto ri e até o quanto consegui ser feliz por cada melga que então abatia. Sentia-me um paladino vencedor naquela luta tão desigual; eram às centenas as melgas e eu um só, mas foi tudo uma questão de trabalho interior. Consegui construir a minha felicidade com açoites no meu próprio corpo. Para ter sido ainda maior o meu contentamento, em toda a sua plenitude, faltou só uma boa palmada, e vontade não me faltou, no então tenente Aparício, meu ainda hoje amigo oficial de cavalaria, já na reserva.

Bissau, 6 de Setembro, segunda-feira

Às onze da manhã, por ordem do General António de Spínola, entravam no seu palácio os oficiais e sargentos do Esquadrão de Reconhecimento Panhard 3432, para buscar dele as boas vindas.

O Governador, sempre de monóculo, acaso para se fazer valer, esperava-nos no gabinete, onde numa conversa próxima e agradável nos revelou que éramos para ele uma nova esperança. Éramos a elite do exército pertencendo à unidade melhor apetrechada da província, disse. Confiava e esperava de nós sacrifícios, se necessários. Salientou acreditar no nosso vigor e desejo do dever cumprido. Despedindo-se, o encontro foi conciso, desejou-nos felicidades e poucas batalhas, mas que em todas as que caíssemos fossem contadas por redundantes vitórias. Confidenciou-nos estar na Cavalaria a sua origem militar e nutrir por ela enorme estima. Que a recepção foi privilégio nosso; por regra não as fazia. Separou-se abraçando-nos, um por um.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Ainda sobre água

Antes disso, quero dizer-vos que mais uma noite de poesia se fez na cidade da Maia, aonde não pude ir por estar no casamento da Inês.
A Inês: sobrinha querida, também teve a sua noite de poesia.
Recitei, no auge da sua festa:

És linda noiva que ri... Boca breve,

Idílio cor-de-rosa... meu deleito!

Sob um vestido branco, como neve,

Há um coração d’ oiro em teu peito.


É fantasia que a tua alma deve

Ao Céu que te abonou honrado jeito.

E nesta vida tão curta... tão breve,

Tu és rainha das noivas... a eito!


O ver o teu sorrir faz bem à gente,

Quando... INÊS... se diz suavemente

nos cheira e sabe a nossa boca a flores.


Tu és sobrinha tão dilecta e querida!

Desejo-te faustosa... longa vida...

Lindos filhos, muitos netos... amores!


Também tive o cuidado de mandar pela NET a minha contribuição para o "Movimentum Arte e Cultura", cujo tema obrigatório era "Vindimas".


Chamam-me vindima. Sei lá quem sou!

Sinto-me prenha de cachos doirados...

Esta gente que por mim entrou,

Vem-mos cortar... ó meus cachos, coitados!


O sol que desponta meu ser “gelou”...

Nada me tira destes meus cuidados.

Cachos decepados!... que triste estou...

Deliciosos sois... oh, torturados!


Sinto do parto a dor que despedaça...

O bálsamo pós parto que se abraça

Num desafogo que se quer beijar.


Extingo-me entre súplicas de pagã

Como qualquer vindima minha irmã...

P´ra renascer feliz no meu lagar.


Maia, 05 de Julho 2009

Leonel Olhero


Agora sim, aqui vos deixo o continuar da viagem para a Guiné.

Já fez 38 anos que lá apareci e hoje fà-los que cheguei a Bula - sítio no mato aonde parei de sonhar.

Como o tempo passa! Chiça!!!


Uige

Sucedia lenta e perfeita a viagem e no final do dia seguinte, estava quase o sol a pôr-se, deitei com curiosidade os descontentes olhos ao mar e nada mais vi a não ser muita água e tanto céu e senti-me nauseado porém, porque era o furriel mais novato da minha Unidade fui escalado para ir de serviço durante a viagem e não tive tempo para puder enjoar. Aconteceu que no navio passou a haver polícia de bordo e um major, um alferes e dois furriéis, eu era um destes, íamos cada qual com dois primeiros-cabos em turnos de seis horas patrulhando todo o vapor. Viajávamos armados e precavidos para impingir respeito àquelas mais de três milhares de estigmatizadas almas naquele inferno amontoadas. Ali navegavam milheiros de cabeças errantes e muitos militares, uma vez a bordo, mais não fizeram do que jogar à lerpa e a dinheiro.

Milhares de camas empilhadas, onde deviam descansar outros tantos soldados, encontravam-se em dois porões que dias depois estavam infestados de insectos, com lixo por tudo quanto era sítio, latas de conserva e maços de tabaco vazios, papéis e beatas arremessados lá pelo chão e nos cantos mais pardos até trampa havia. Os viciados não deixavam os porões nem para ir às casas de banho. Aqueles imbecis aboloreciam sem ver a luz do sol durante dias consecutivos e nem subiam para as refeições; comiam o que outros lhes mercavam na cantina. Alguns daqueles palermas, que perderam no jogo todo o dinheiro e haveres, tinham sentinelas que os avisavam quando a polícia de bordo aparecia ao fundo do incomensurável corredor. Porém, nós fazíamos vista grossa, não fosse o pessoal amotinar-se. Sabíamos que ali navegava filho de muita mãe e por isso, apesar de termos recebido ordens para confiscar cartas, dinheiro e identificar os prevaricadores, só lhes evidenciávamos um receio, que eram as pontas de cigarro acesas que aqueles depravados deitassem para o chão causando um incêndio a bordo. Movidos por tal medo, continuadamente lhes lembrávamos para que apagassem as priscas; não fossemos acabar nos peixinhos.

Os dias iam tão tristes quanto eu, enquanto mais aqueles porões tresandavam a merda e mijo. Um cheiro nauseabundo e pestilento impregnava aquele ar que se tornava cada vez mais repugnante à medida que para nós se abeirava o bafo do Equador. Muitos almejavam chegar a África e lá não havia de cheirar tão mal.

Uma placa bem pintada e suspensa numa corrente de ferro aludia não ser permitido o acesso para além dela, a não ser à tripulação. Saltei-a estando lá o comandante do navio; abeirei-me dele e com positiva eloquência revelei-me prevaricador, pretendia igualmente alargar os meus horizontes, disse-lhe gracejando. Simpático e também rindo, o oficial ripostou que no navio iam milhares e um só a infringir não era relevante. Ajuntou mesmo que podia ir ali quando bem entendesse. Assim o fiz por ocasiões contínuas numa beata violação e demorei-me por ali com um sempre olhar distante, para lá da proa naquele horizonte humedecido. Daquele soberbo ponto sulquei infindáveis milhas deambulando os meus amargosos olhares pela imensurabilidade do oceano. Vi enormes cardumes de peixes, literalmente voando à frente do navio. Deliciei-me com a companhia de alegres golfinhos que nos precediam com jocosas brincadeiras e, pela sua maneira divertida de proceder, antevi que não iam para a Guiné.

Naquele insípido retiro, desprezado, abandonava-me aos mais desconsolados pensamentos, mas em vez de chamar a morte em meu socorro, sentia-me muito mísero, foi mais forte o amor à vida que me levou a querer prolongar a existência e se possível até aos cem anos. Em retalhos de noites... que nostalgia!... encostado à chaminé do navio, fui transportando comigo o luar. O silêncio caía-me em gotas enquanto rebuscava na vastidão do oceano respostas para aquela desconsolada vida. Era naquele gueto, já sem sombras do sol-pôr, que pensava no meu carrasco e amargurado fim e, enquanto o mar persistia resignado e sereno, o desgraçado e pateta barco, que sulcou atilado, passou a andar louco e aos ziguezagues. Podíamos ver no dorso das salgadas águas e na espuma branca que fazíamos as curvas que então pintávamos.

Uma tarde um, junto da chaminé, disse que era estratégia para iludir um suposto submarino russo e assim poder-se-ia evitar uma colisão... “fruto do acaso”... Pude enxergar que a minha má estrela tinha definido o puto do meu destino. O espírito maligno, abominável criatura que me queria mal tinha, com desdém, decerto tudo combinado, mas se me queria tramar havia de ir para África comigo... para o inferno!


Cabo Verde

Ziguezagueando, no Domingo avistámos terra e detemo-nos ao largo da ilha do Sal e no dia seguinte fundeamos ao largo da cidade da Praia.

Na manhã do último de Agosto ancorámos na ilha de São Vicente e alguns centos fomos a terra. Lá, vi com os estes meus olhos quanta miséria maltratava aquela gente. Vi o que nunca pensei ser possível... duas cabras deambulavam tristes pela rua comendo papel de um saco se cimento que se tinha rasgado e adiante duas martirizadas mulheres, que iam no encalço de militares, aguardaram que um deles atirasse ao chão a casca da banana para sobre ela se arrojarem, repartindo-a e devorando-a...

Que foi feito do meu sonhar?!... tudo me fugiu... tudo me morreu...

Fiquei agoniado e triste com tão horrendas visões, mas o barco que as não enxergou, ao anoitecer teimou em nos levar até ao nosso perigoso destino.

...

Em África o sol morreu, o mar vestiu-se de luto, a triste noite caiu - mas não se magoou - e nós víamos um céu translúcido e cintilado, e lá ao longe pestanejavam-nos as pálidas e mortiças luzes de Bissau.

Ainda ao largo, estafado e farto de tanta salgada água, o navio parou as máquinas e foi dormir. Envolveu-nos a serenidade mais completa que é exequível imaginar; senti o cáustico golpe do silêncio, desci ao camarote, a minha alma ajoelhou-se desalentada e deixei-me desanimar arrastadamente num granjeado sono.

Na manhã seguinte com os meus penitentes olhos espreitei pela escotilha e vi que o sol acordava pálido e se elevava poucos graus acima do horizonte, enquanto a minha descontente alma mergulhava numa pasmaceira muda. Sem descanso, por sobre aquele mar de azeite ameigado pela brisa quente, os meus olhares percorriam, para lá e para cá, a distância que nos desapegava de Bissau e assim se animava mal aquele dia de sábado.

Às dez da manhã, torturado e não podendo deixar de sentir a paciência da minha angústia, preparei-me para o desembarque. Carreguei os meus haveres, botei o pé naquela incendiada terra e senti a violência de toda aquela temperatura deplorável. O sol iluminava-me vivamente, o calor húmido tornava o ar parado e pegajoso e difícil de respirar; as endemoninhadas roupas colavam-se à minha pele e a transpiração era incómoda e constante.

...

Cheguei a África, terra de sol!


Um abraço a quem me lê. O meu obrigado público a quem me vem seguindo e ainda a quem me envia mensagens de carinho e ânimo, para aqui continuar com as minhas memórias.

Obrigado àquela seguidora que, inclusivé, manda beijinhos para os meus netos.

Sei que há forma diferente de fazer estes agradecimentos, só que as minhas noções de informática não deixam que os faça de outra maneira.

Àquele que me diz que, também por aqueles dias, viajou no Uige para a Guiné, um abraço especial por ter regressado. Todos sabemos que muitos o não fizeram e não foi por vontade própria que assim agiram. Coitados!

Até breve!




quinta-feira, 27 de agosto de 2009

As desculpas do costume e o embarque para a Guiné...

Meus amigos:


Uma vez mais as desculpas do costume... Não tenho emenda e deixei que longos dias se passassem sem que tenha tido convosco uma conversa. Sou incorrigível, mas desta vez tendes que me perdoar. Acontece que tenho comigo a minha “princesa” e o seu irmão que fez um aninho no dia dezasseis.

Ela é a Filipa, a minha neta mais velha... e segundo ela, já muito “grande”. Fará no mês próximo três anitos... o mano é bem mais novo...

Com eles cá em casa tem sido um grande desassossego e não me resta tempo que não seja para ser avô a tempo inteiro, o que até é óptimo.

Fez ontem anos que embarquei para a Guiné.

Não passo sem vos deixar aqui um enxerto do livro da minha vida militar e do qual tenho vindo a falar-vos:


"O embarque

No Regimento de Cavalaria nº. 7, na Calçada da Ajuda, em Lisboa, dormi na véspera do embarque, não fosse acordar tarde e falhá-lo era uma pena!

Lisboa 25 de Agosto, quarta-feira

O sol estava gracioso, soalheiro e muito quente e o dia tão cristalino, límpido e puro pressagiava-me um doirado e fino areal. Apetecia-me ir para a praia, mas havia um navio ancorado lá ao longe à espera para me enrascar. “Uige”, assim se chamava o gajo e até tinha pintado o nome no casco para que se lesse. Era enorme, mas não era grande coisa. O filho da mãe tinha uma colossal escada abaixada para o cais e era por ali que os meus olhos ateus subiam, à medida que a muita tropa para lá ia sendo indignamente atafulhada.

Amargava pacientemente num amontoado humano e gemia de malas nas mãos e mochila às costas pela minha vez de trepar, enquanto lá no alto, na proa e na ré, a bombordo e a estibordo havia já mil e muitos soldados. Centenas iam-se alteando em fila e o baixel presunçoso, altaneiro e empertigado pelo seu desempenho, na quietude das águas salgadas, com prosápia baloiçava-se todo. Filho da p... , vaidoso e arrogante, se soubesses o que nos vais fazer, por decência, pejo ou vergonha metias água e mergulhavas fundo, magiquei, mas o vapor não se embaçou com os meus malcriados pensamentos e foi incessantemente consentindo em receber sempre mais gente no seu, “eu”.

Fui dos últimos a calcar-lhe com asco e muita raiva o convés.

Estupor! Não tarda que seja meio-dia e agora tens-me cá, cogitei, enquanto duas insubmissas lágrimas me escapavam vadias pelo canto do olho; todavia tinha dentro de mim a certeza de que em todas as lágrimas jaz uma esperança e não deixei ali morrer a minha.

Depois de mim só parcas dezenas subiram e com eles também a enorme escada que nos aferrolhou a p... da saída. Arrumamo-nos o melhor que pudemos e éramos milhares, enquanto lá em baixo no Tejo o sol castigador arrebatava reflexos de prata no sossego das águas serenas por onde, com preguiça, navegavam fragatas.

Foram as amarras tiradas e todo o navio estremeceu, acaso de comiseração por todos nós; rugiu fundo no seu âmago e a sua hélice circuitou com talento e um brutal poder. As águas ao redor moveram-se agigantando-se e quebrando e espumando de encontro ao embarcadoiro e o bruto e rude começou fugindo connosco, passava do meio-dia no meu Cauny.

Cá vamos nós, pensei e recomendei-me a Deus ao principiar aquela triste navegação.

No Cais, eram imensos os que nos viam partir agitando lenços brancos em despedida enquanto no vapor íamos sendo surripiados à nossa liberdade; também dali eram milhares os lenços bulindo. Cá e lá, no batel e no porto eram em dobro os olhos alagados por tão desconsoladas lágrimas, mas o estupor do barco não se estonteou com isso e rumou certeiro em direcção à barra."

...

Um abraço meus caros e prometo que em breve vos falarei do resto daquela viagem.