terça-feira, 27 de outubro de 2009

Bissau, 7 de Setembro, terça-feira

Carregando as trouxas, pulámos para os camiões da Companhia de Transportes e deixámos que nos arrastassem para o nosso insondável destino. Fomos levados para um itinerário de desgraças; íamos desarmados, o que nos causou algum descontentamento e um amuo generalizado.

Percorridos uns trinta quilómetros, num sítio rude e empoeirado, chamado João Landim, aonde havia só um tímido e degradado destacamento da marinha, qual entorpecido bairro de velhas latas e quando o sol ainda muito nos malhava em cima, atravessámos de jangada um largo rio. O Mansoa, assim se chamava aquele, fruía de marés; era um braço de mar e naquele insípido quase fim de tarde, quando o ar estava parado, húmido e morno, escarnecia arrogante na sua maré-alta.

Logo que chegados a terra na outra banda... na margem do sofrimento... mal as jangadas se tinham aliviado das aborrecidas cargas, arrebentou repentino e forte tiroteio, ouviram-se rajadas de metralhadoras e morteiradas reboavam também em selvagens explosões. Naquele lugar desolado não aparecia abrigo; era desterro profundo... nem árvores havia tão-pouco. Sobrevinha apenas a rampa em cimento de acesso às jangadas e ao redor havia a “bolanha,” que era lama, mais lama... muita lama pegajosa a perder de vista. Por ali não vi sítio que servisse de refúgio e muitos dos meus camaradas afocinharam. Num arranco de consciência e tolhido por uma mescla de dúvidas, agachei-me junto dum pneu dum camião. Era desmedida a verdura da minha mocidade e só por isso não saí de lá borrado, como a maioria daqueles infelizes. Aparvalhados, só depois apreendemos que se tratava de um tradição. Os militares velhinhos, que nós íamos render, assomaram lá ao longe e aos molhos, no meio de jumentas gargalhadas. Aos “atacantes” podia-se-lhes ver nos rotos retratada a alegria pela nossa chegada. Nós íamos rendê-los. Éramos o favor dos céus que divagaram durante mais de dois vagarosos anos. Correram para nós e todos abraçavam... hum!... que fantasia! Estávamos defronte deles apavorados, era certo, mas estávamos... e era o que mais os deleitava. Por isso os olhos se lhes riam de júbilo, enquanto a qualquer um de nós, cada qual mais espavorido e boquiaberto, não cabia um feijão no cu. Honestamente, falo por mim. Os meus olhos deveriam estar ainda cheios de resignação e o pavor tinha-os ultrapassado. Se fosse capaz de fazer o tempo voltar para trás, ia à caça com a espingarda de pressão de ar que deixei na minha arredada aldeia. Recordei ainda com tristeza a fisga que, anos antes, enjeitei no sótão da casa dos meus velhotes... o meu convento de saudades...

Tudo não passou de zombaria. Se assim não fosse não estava hoje no vosso reino, ó vivos. Talvez nem a morte me tivesse doído mas, sem estremecer, apresentar me ia limpo diante de S. Pedro, valha-me ao menos isso!

Não é que nós não fossemos audazes. Os nossos vinte anos faziam-nos imortais e destemidos militares, mas como abalámos de Bissau sem uma só arma... Era assim, apurei mais tarde. Nas ruas de Bissau e entre Bissau e João Landim, passando por Safim, não se viam armas, só que ninguém sabia do detalhe.

Consertados do susto teimámos na viagem com firme escolta militar. Havia meia dúzia de pujantes carros de combate Panhard, muitos militares com metralhadoras e bazucas e morteiros não escasseavam ali também. Por uma dúzia de quilómetros a coluna rodou em útil cadência e sempre em estrada alcatroada, até que parou. Recebemos ordens para apear, quando à nossa volta havia só mato e velhas árvores assustadoras e frondosas e quando também o sol abaixava meio apagado e triste no ocaso enquanto que, com cómica pressa, o crepúsculo se anunciava. Tínhamos que avançar com cautela, em duas filas pela berma da estrada, até ao que seria o nosso quartel. Que também não era sabido quando adviriam as viaturas, por isso que cada qual levasse o que lhe pudesse vir a fazer falta, nos dias chegados.

Vi camaradas a carregar todas as malas num zelo sobre-humano enquanto para mim dizia: “a única coisa que me irá fazer falta é só a máquina de barbear”. Assim ajuizei e fiz, roubando ao saco uma velhinha Philishave de duas cabeças e meti pé ao caminho, sem saber tão-pouco se por lá haveria, ou não, electricidade.

Um camarada que conheci no embarque e companheiro de camarote, o Xico, assim chamava ao furriel rádio-montador, acirrou-me para que levasse algo mais e não deixou de me lembrar que as malas, que soltava à sua sorte, poderiam até sumir. Não me persuadiu e não me apeteceu levar nada e depois era eu quem mais ajudava o Xico a carregar o pesado espólio.

Sempre de atalaia, andámos centenas de metros. A estrada de piche, parva e ardente, fez patética curva para a direita e além avistou-se o aquartelamento. No mesmíssimo instante devolvi ao Xico os seus pertences.

Foi brincadeira dos velhos que nos forçaram a palmilhar o meio quilómetro final. Enquanto que nem velhas mulas todos os camaradas gemiam com as suas brutais cargas, estuguei depois o passo e, quando eram cinco da tarde, quase noite na Guiné e já se via a luz fria do luar, fui o primeiro desditoso a vencer o ferrugento arame farpado do quartel.


Bula

Na porta de armas, os “periquitos,” assim se apelidavam os recém-chegados, fomos coagidos a pular uma barreira improvisada com troncos de palmeiras.

Os que nos esperavam e os que nos escoltaram – do Esquadrão 2641 – amontoando-se em cachos à nossa volta, emitiam pios e gritavam: “salta periquito!”... tudo no meio de muita balbúrdia, assobios, gargalhadas espalhafatosas e intensas palmas que vertiam alegria. Pulámos e como fui o que ali chegou mais leve, fui o primeiro dos desditosos a calcar o chão daquele agora nosso quartel, que me deu tristeza conhecer. Aquilo era uma triste mão-cheia de barracas de lata. Desejei ver-me longe daquele sítio. Só mesmo Deus sabia o que nos tinha aprontado.

“Vi a miséria do meu povo”. Êxodo 3, 7.

À noite houve festa. E por quê?! Só, porque quem a teceu tinha quem o revezasse, podendo esgueirar-se daquele desumano infortúnio e assim a falsidade alcançou vida própria. Eu não sarava a minha dor!... e os “velhinhos” mostravam sorrisos maliciosos...

Ah!... Como sempre, continuava distraído e só mais tarde percebi que no bar – com mesas e cadeiras feitas de aduelas de pipos – oficiais e sargentos, novos e velhos, pelas razões erradas, vazavam whiskies. Estremecido pelo sedento desejo de apreciar um, abeirei-me do balcão e ao militar ali de serviço questionei quanto custava. O Lopes disse, “vinte e cinco tostões,” deitou a mão a um copo e não deixando nunca de me fixar, arrastadamente, alcançou uma garrafa de Dimple. Soltei uns momentos e ordenei que ali afundasse gelo e whiskies e que os contasse, até eu dizer, “alto” – depois eu havia de me confessar. Acatou e não perdeu o tino à conta. Quando extravasava, gritei, alçou a garrafa, contou onze e acrescentou: “foda-se!... cuidei que ia verter”. Com mãos piedosas esvaziei-os de um trago só. Era um pouco forte, molhada tosse irrompeu breve, mas gostei do paladar e recolhi-me depois num quarto sobrelotado, embusteando com pálpebras ansiosas um cerrado e bêbado sono, até ao alvorecer.

No dia próximo atribuíram-me duas mãos-cheias de soldados pretos, que Deus todo-poderoso tinha feito à sua imagem e semelhança. Ah!... mas Deus fê-los à pressa; todos toscos e rudes, selvagens e muito brutos e sem a menor perfeição nos acabamentos. Deus até se esqueceu, vá lá saber-se por quê, de os pintar, deixando-os carecidos numa descontente tinta de aparelho. Deram-me ainda um díspar soldado branco que assentou praça na Guiné – e ele foi “o meu cabo dos trabalhos”. Um espertalhão que me queria ultrapassar...

Os pretos, eleitos de entre os mais bêbedos, foram-me dados porque era o eterno furriel mais novo e por essa causa cruel – e porque me não era possível lidar com o futuro – ia ser destacado para reforçar uma companhia de artilheiros, ainda mais tristemente perdida no mato.

O meu amor estava do lado de fora e o diabo, que não dormia, teimava em perseguir-me...

O capitão Ruben, a meio da sua comissão de serviço e comandante da minha Unidade, teve a lisura de me prevenir que os pretos, com que me brindava, eram do piorio e o branco era mais rasca do que todos os pretos juntos. Aconselhou-me cautelas com todos e prudência com a peste do soldado branco; obra de um deus mau e distraído que nem de preto o pintou sequer. Aspirou-me sorte e ajuntou que aquela escória, indo comigo, o deixava sossegado por um excelso mês.

A escala de serviço voltou ao início; ou melhor: jamais passou além de mim e eu tornei a lastimar-me por ser o imperecível furriel mais novo e também caixote do lixo daquela ralé. A minha lanterna estava a ficar sem azeite e a minha alma sujou-se na bosta. Desmoralizações, tive-as terríveis! Não me era permitido resistir e eu não me queria render. Era de mais! Porra! Repontei baixinho, não fosse alguém ouvir. Eu, outra vez?!... será que não há outros palermas neste quartel e não haverá mais ninguém para pôr à prova?! Assim, só podia continuar a olhar para um perpétuo vazio, mais alheado de uma cada vez menos crível margem de alegria e nem sequer podia desembuchar.

O Ruben transmitiu ainda, valha-me ao menos, que de entre aqueles de etnia balanta e ordinários negros – outro ultraje – havia um de etnia fula, o Mussá Candé, muçulmano que não bebia... um mimo para mim.

Não era nenhum jovem tolo, mas estavam querendo fazer-me chanfrado. Ah, meu Deus! meu Deus!

Ao outro dia fomos ao Batalhão, quartel adjacente e de quem éramos subordinados, aonde nos apresentámos. Precavido, porque adivinhava que ali vinham sacrifícios, privações, cuidados, canseiras, chuvas, calores, suores e medos, tomei as minhas medidas e exigi arma e cartucheiras, carregadores e munições e bastantes granadas de mão.

Pudera! Brincávamos, não?!

Perdi o interesse pela comida e não jantei.

Rente à noitinha, na parada, alumiada pela frouxa claridade das estrelas e pela luz branca de uma lua quase cheia, conversava com dois militares que tinham chegado comigo e ouviram-se, quase em simultâneo, três aterradoras explosões. Todo o chão tremeu de medo debaixo dos meus pés e um, o Cunha, gritou com terror:

-Eles, aí estão!!!

Cavámos e eu no sentido contrário ao de ambos e foi então que o Bastos se deteve, me lançou um olhar terrífico e berrou:

-Por aqui, furriel!!!

Retrocedi, aliando todas as minhas forças, e juntei-me a eles que se resguardavam já nas traseiras da cantina, onde havia duas ou três toscas mesas e bidões cheios de terra, que serviam de conchego. Afundamo-nos naquele lugar precário para a morte, enquanto os rebentamentos se repetiam numa vasta e dolorosa música.

Curto sossego das bombas... ouvi serenas conversas... espreitei e vi meia dúzia de soldados pretos que, tranquilos, conversavam e comiam. Eu estava incrédulo! Angustiado, perguntei-lhes se não tinham ouvido explosões e eles, muito serenos, riram-se, encolheram os ombros e um falou: “furiel,” (com um só r) ser obus dos Batalhão, estar bater os zona”. Supliquei-lhes que se refugiassem, mas riram em subidas gargalhadas e, num enorme alarido e de braços abertos, disseram em uníssono, numa incómoda lenha das palavras: “não ser os guera! ... não ser os guera!”... enfim! mergulharam depois as mãos nas fundas malgas e duraram a refeição naquelas estranhas e afras formas de cortar a fome.

Rezei aos santinhos todos da capela da minha aldeia e da minha devoção, pensei nas flores do jardim da minha casa e nas ocasiões do silêncio que agora não tinha. Eu estava vulnerável às imparciais e frígidas armas de aço e vi ali os meus “outroras” perdidos.

Procurando a todo o trecho esconder os nossos medos e fragilidades, tornámos vagarosos e desconfiados à parada.


2 comentários:

  1. Querido amigo Leonel,
    Desejo a todos, com especial benquerença, uma muito feliz quadra festiva, esta que engloba o tempo natalício e o começo do ano vindouro. Ao Leonel, don e director deste espaço, à sua família, aos seus amigos e fiéis leitores, desejo muita saúde e muito amor e muita alegria, e tudo o mais que poderia ser desejado, resume-se bem nesses três votos; estou convicto que toda a felicidade e prosperidade virão por consequente acréscimo natural.
    Até sempre, com amor,
    Armando Figueiredo (Daniel Cristal)

    http://www.google.pt/search?q=Daniel+Cristal&hl=pt-PT&start=0&sa=N

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  2. Amigo Daniel Cristal:

    Grato por suas palavras de carinho e pelos votos formulados.
    Peço a Deus para que abone saúde bastante para o senhor e sua família.

    Abraço

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