terça-feira, 6 de outubro de 2009

Meus caros:
O tempo nunca andou tão veloz, quanto agora. Parece ter sido ontem e já lá vai um mês que nada escrevi para vós.
Perdoais-me?
É com dificuldade que acredito que sim. Sois fantásticos!

Guiné

Bissau, 4 de Setembro

Aguentava comigo um sentimento, para o qual não existem palavras, que sobre mim se debruçou e se apoderou do meu desafortunado espírito, mas dando concisos passos no cais, encontrei o furriel Luís; aquele que foi o divertido primeiro-cabo miliciano madeirense, do pelotão das Caldas da Rainha. Com ele, chegado dias antes, estive alguns minutos e, tê-lo encontrado, deu-me um tudo-nada de alento.

Camiões levaram-nos para o Quartel de Adidos, onde abandonei as tralhas numa tenda de campanha e soube que estava ali de Sargento de Dia. Filaram-me outra vez! A ideia de ser o imutável furriel mais novo começava a enfadar-me. Depois de oito dias continuados de serviço voltava a ser o primeiro na escala. E os outros?! Perguntei aborrecido ao tenente Aparício, oficial da nossa Unidade. “No barco foi uma coisa, aqui é outra”, foi a luzidia resposta que ainda hoje me atroa nos ouvidos. Quem me dera ter naquele momento um alfinete com que lhe pudesse espetar o snobismo... Furava-lho bem furado... ai, isso furava! Não me compete atacá-lo, nem defendê-lo e muito menos julgá-lo, mas o sorna e parasita nem tão-pouco se deu ao “árduo” trabalho de saber quem era o pateta seguinte na lista dos desditosos. Não achei piada nenhuma à merda da brincadeira.

Se é verdade que a maior parte das pessoas desculpa os erros de quem seja simpático, neste particular não achava aquele oficial, naquela época, minimamente agradável e, como se isso não bastasse, tinha que dormir no chão com centenas de mosquitos que me ruminavam a paciência. Aqueles, zoavam-me incessantemente aos ouvidos chupando-me o sangue fresco. Para arrelia, e meu grande desespero, provocavam-me borbulhas, que coçava, e quanto mais coçava... mais coçava... e muito mais ainda apetecia coçar. Era sofredor!

Nos Adidos, levar uma vida fácil era tarefa difícil, mas que importava ao tenente Aparício o meu mal-estar? Não é verdade que pimenta no cu dos outros é refresco?! Cometer uma injustiça é mais desonroso do que sofrê-la. Comecei a pensar seriamente que a minha vida era já uma grande aventura, mas tenho o dever de avisar que, “aventura” era a designação romântica que encontrei para “problemas”.

Tacteei no bolso o baralho, furtei-lhe carta: “liberta-te do peso das tuas duras mágoas e sabe perdoar. O perdão é catalisador que cria ambiência para nova partida, para um reinício. Se caíres sete vezes...” A carta sabia; tinha que dar ao meu oficial o benefício da dúvida e parti lesto para tomar conta do serviço.

Que remédio!

Meu caro: a vida é uma questão de riso e rir foi coisa que nunca deixei de fazer. Nos Adidos, onde fui impiedosamente picado pelo meu oficial e pelos mosquitos que não me davam paz, ri vezes sem conta sempre que esborrachava um daqueles insectos, e matei centenas. Quantos mais matava mais me ria... ouso dizer que me sentia mais feliz. Cada mosquito morto, por aquelas noites adentro, era uma nova alegria para mim e cada alegria sentida fazia dissipar cem tristezas. Imagine o quanto ri e até o quanto consegui ser feliz por cada melga que então abatia. Sentia-me um paladino vencedor naquela luta tão desigual; eram às centenas as melgas e eu um só, mas foi tudo uma questão de trabalho interior. Consegui construir a minha felicidade com açoites no meu próprio corpo. Para ter sido ainda maior o meu contentamento, em toda a sua plenitude, faltou só uma boa palmada, e vontade não me faltou, no então tenente Aparício, meu ainda hoje amigo oficial de cavalaria, já na reserva.

Bissau, 6 de Setembro, segunda-feira

Às onze da manhã, por ordem do General António de Spínola, entravam no seu palácio os oficiais e sargentos do Esquadrão de Reconhecimento Panhard 3432, para buscar dele as boas vindas.

O Governador, sempre de monóculo, acaso para se fazer valer, esperava-nos no gabinete, onde numa conversa próxima e agradável nos revelou que éramos para ele uma nova esperança. Éramos a elite do exército pertencendo à unidade melhor apetrechada da província, disse. Confiava e esperava de nós sacrifícios, se necessários. Salientou acreditar no nosso vigor e desejo do dever cumprido. Despedindo-se, o encontro foi conciso, desejou-nos felicidades e poucas batalhas, mas que em todas as que caíssemos fossem contadas por redundantes vitórias. Confidenciou-nos estar na Cavalaria a sua origem militar e nutrir por ela enorme estima. Que a recepção foi privilégio nosso; por regra não as fazia. Separou-se abraçando-nos, um por um.

2 comentários:

  1. Estas memórias, são dignas de se ler e acompanhar a vida de um militar, como em preito por todos aqueles que passaram por situações idênticas. Bem haja pela partilha. Um abraço Graça

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  2. Agora é fácil partilhar mas, naqueles tempos tão difíceis, não era possível fazê-lo, se bem que eu me não importasse.
    Naqueles dias, cada qual tinha que levar sozinho a sua cruz...

    Obrigado pelo seu comentário
    Um abraço

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