quinta-feira, 27 de agosto de 2009

As desculpas do costume e o embarque para a Guiné...

Meus amigos:


Uma vez mais as desculpas do costume... Não tenho emenda e deixei que longos dias se passassem sem que tenha tido convosco uma conversa. Sou incorrigível, mas desta vez tendes que me perdoar. Acontece que tenho comigo a minha “princesa” e o seu irmão que fez um aninho no dia dezasseis.

Ela é a Filipa, a minha neta mais velha... e segundo ela, já muito “grande”. Fará no mês próximo três anitos... o mano é bem mais novo...

Com eles cá em casa tem sido um grande desassossego e não me resta tempo que não seja para ser avô a tempo inteiro, o que até é óptimo.

Fez ontem anos que embarquei para a Guiné.

Não passo sem vos deixar aqui um enxerto do livro da minha vida militar e do qual tenho vindo a falar-vos:


"O embarque

No Regimento de Cavalaria nº. 7, na Calçada da Ajuda, em Lisboa, dormi na véspera do embarque, não fosse acordar tarde e falhá-lo era uma pena!

Lisboa 25 de Agosto, quarta-feira

O sol estava gracioso, soalheiro e muito quente e o dia tão cristalino, límpido e puro pressagiava-me um doirado e fino areal. Apetecia-me ir para a praia, mas havia um navio ancorado lá ao longe à espera para me enrascar. “Uige”, assim se chamava o gajo e até tinha pintado o nome no casco para que se lesse. Era enorme, mas não era grande coisa. O filho da mãe tinha uma colossal escada abaixada para o cais e era por ali que os meus olhos ateus subiam, à medida que a muita tropa para lá ia sendo indignamente atafulhada.

Amargava pacientemente num amontoado humano e gemia de malas nas mãos e mochila às costas pela minha vez de trepar, enquanto lá no alto, na proa e na ré, a bombordo e a estibordo havia já mil e muitos soldados. Centenas iam-se alteando em fila e o baixel presunçoso, altaneiro e empertigado pelo seu desempenho, na quietude das águas salgadas, com prosápia baloiçava-se todo. Filho da p... , vaidoso e arrogante, se soubesses o que nos vais fazer, por decência, pejo ou vergonha metias água e mergulhavas fundo, magiquei, mas o vapor não se embaçou com os meus malcriados pensamentos e foi incessantemente consentindo em receber sempre mais gente no seu, “eu”.

Fui dos últimos a calcar-lhe com asco e muita raiva o convés.

Estupor! Não tarda que seja meio-dia e agora tens-me cá, cogitei, enquanto duas insubmissas lágrimas me escapavam vadias pelo canto do olho; todavia tinha dentro de mim a certeza de que em todas as lágrimas jaz uma esperança e não deixei ali morrer a minha.

Depois de mim só parcas dezenas subiram e com eles também a enorme escada que nos aferrolhou a p... da saída. Arrumamo-nos o melhor que pudemos e éramos milhares, enquanto lá em baixo no Tejo o sol castigador arrebatava reflexos de prata no sossego das águas serenas por onde, com preguiça, navegavam fragatas.

Foram as amarras tiradas e todo o navio estremeceu, acaso de comiseração por todos nós; rugiu fundo no seu âmago e a sua hélice circuitou com talento e um brutal poder. As águas ao redor moveram-se agigantando-se e quebrando e espumando de encontro ao embarcadoiro e o bruto e rude começou fugindo connosco, passava do meio-dia no meu Cauny.

Cá vamos nós, pensei e recomendei-me a Deus ao principiar aquela triste navegação.

No Cais, eram imensos os que nos viam partir agitando lenços brancos em despedida enquanto no vapor íamos sendo surripiados à nossa liberdade; também dali eram milhares os lenços bulindo. Cá e lá, no batel e no porto eram em dobro os olhos alagados por tão desconsoladas lágrimas, mas o estupor do barco não se estonteou com isso e rumou certeiro em direcção à barra."

...

Um abraço meus caros e prometo que em breve vos falarei do resto daquela viagem.


2 comentários:

  1. Primeiramente, parabéns pelos lindos netos, mesmo lindos. Não admira que queira ser avô a tempo inteiro...
    Depois, gostei desta "página" da sua vida. Imagino o seu ânimo e de todos aqueles que embarcaram consigo, tirados do amor da família para uma guerra que foi inglória. Mas a vida tem destas coisas e faz bem em recordar e nós cá estamos para o ler. Uma boa semana com os seus netinhos. Beijos para eles. Graça

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  2. Encontrei Memórias de um Furriel.
    E vim dar aqui com o seu blog, e nas paginas do seu livro encontrei tudo aquilo que eu vivi também mais ou menos na mesma altura,também fui no Uige Com destino à Guiné.

    Se me permite vou levar Memórias dum Ferriel comigo.
    E Voltarei aqui com mais tempo

    abraço José

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