sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Pausa. Grande pausa e agora, que chegou o novo ano, juro-vos que a perguiça se foi.
Aos meus amigos leitores desejo um ano com muita saúde, alegrias e ...
curiosidade bastante para vir aqui espreitar o meu blog.

Cá estou para vos adiantar um pouco da minha história:

Nhamate


Bula, 12 de Setembro, domingo


Casmurra coluna militar, apoiada por seis possantes carros de combate “Panhard,” alguns resolutos unimogs apinhados de soldados robustamente armados, umas quantas barliets, da Companhia de Transportes, com víveres e uma vintena de camionetas civis, manhãzinha, cedo, após ter sido dada a picada como “limpa” e que havia “roda livre,” saiu de Bula, com o inflexível propósito de chegar a Nhamate, arrastando-me com os meus soldados, para lá nos abandonar como reforço da Companhia de Artilharia, conhecida como “Ferrobico”.

Muitos buracos e pó e lama foi tudo quanto topámos. A picada, aquela asna, estava medonha!

Nutrido de tensão e sentado num unimog, de cinturão empanturrado de cartucheiras e obesas granadas, de metralhadora entre pernas em posição de fogo e o dedo esperto e precavido a tanger o gatilho, lá ia eu de imbecis e escancarados olhos fitos no pardacento mato. Lembro-me, o tempo não me funde as sombras na memória, aquilo eram lances de caça. A paisagem remoçava-se, repetia-se morosa e o avançar tornava-se penoso e cruel e nós, vulneráveis, soletrávamos o medo do sangue. A morte espreitava-nos a todo o momento...

Bem sei, bem sei que escrever deste jeito será sempre uma maneira de colorir, ou disfarçar o pânico, que era aquilo que nos perseguia. Sim, o que nos borrava! Bem percebo que escrever deste modo será sempre uma forma de alumiar o medo, que senti sob a luz cansada que rompia o capim cerrado, naquela espécie de noite parda que me dormia pelo corpo adentro. Compreendo que fui continuadamente olhando os sons que a trabalhosa coluna pintava e revivo que, perante os tão eminentes perigos, não me foi permitido sonhar. Tornei-me frágil e humano, enquanto que ao longo da picada, abandonando a mata, apareciam soldados que tinham partido antes do nascer do dia para nos afiançarem segurança. Eles tinham feito a picagem esgaravatando em busca de minas, que por acaso o inferior inimigo tivesse por ali dissimulado num infame jogo de misérias enganador. Só depois do esmiuçado trabalho nos foi dito que a picada estava “limpa” e havia “roda livre”. Recebemos ordens para avançar... era suposto não haver minas...

Ao meu lado ia um furriel que rendemos e me acompanhou até ao atribulado destino. O Joaquim, foi-me explanando o desdobrar da estafante e arriscada viagem; falou-me dos locais – consequências desastradas – por onde nos afoitávamos. Naquela coluna partilhávamos tudo: os medos, os perigos e o pó e não queríamos repartir o combate, ainda que por um triunfo se viesse a saldar. Roçávamos pelas barbas do inimigo e éramos velas naquela negra noite de piche incendiadas.

O Joaquim, ergueu o braço e, de indicador delicado, apontou o que chamou “lugar da placa”. Arregalou os olhos, esfregou-se no meu ouvido e depois gritou além do fragor dos camiões: “cuidado, ao passar por aqui!... perto, os “turras” têm acampamentos, mas poucos de nós têm lá chegado... às vezes são eles que vêm!”... depois, alteou o cu, debruçou-se sobre mim e berrou mais ainda, para que me não escapasse: “aqui é sítio para embrulhar!!!

O calor batia-me com violência quando parámos em Binar, estéril povoação a meio do caminho, aonde ficou fatia da coluna para abastecer um quartel mal parido e nós porfiámos teimosamente picada além, num avanço moroso e atroz, antes que fosse porventura tarde.

Adiante, aonde o perigo era maior, o Joaquim apontou uma colossal cratera, feita por uma mina que, menos de um mês antes, ceifara uma Panhard – 15 de Agosto de 1971 – e cuja tripulação, comandada pelo furriel Valter Pastor, que nós fomos render, dali escapou aturdida mas ilesa.

Há homens com tanta sorte!

Mais além, o Joaquim, aludindo à “curva do lobo” – local de terrível fama e mal desenhado pela natureza – instigou que, sempre que por ali fosse, tivesse cautela. Senti a energia da emoção, cuspi forte nas mãos e, com raiva!... esfreguei-as. Ah, caramba! Bradei depois.

Bem sei que aquela curva sinistra, ou talvez um território de sangue, se recurvava ameaçadora e muito estreita. Divisei que a ronceira coluna ali adormecia, expondo-se a uma fatal emboscada e atentei ainda que não passava de um enlameado carreiro, aonde os veículos derrapavam à medida que, com impaciência, os pneus se queriam filar na terra ardilosa. Vi que tudo aquilo era enorme resistência, por si só difícil de vencer. Ali as estúpidas rodas traseiras atolavam-se. Em grandes sorvos, os cegos motores bramiam roucos, aquecendo o ar por si já quente que me sobrevoava a pele e, furibundo, o suor escorria-me muito sujo...

Olha para ti, Leonel. Metes nojo!... falei assim para a minha alma.

Mais além, o Joaquim apontou o “canal da bazuca” – sítio malparecido, de nebulosa mata e seculares árvores de troncos rugosos e com décadas de profissão na arte de fabricar medos e sombras –. Ali, o capim matreiro vinha forjando hábil túnel que, maçador, quase nos arrebunhava os rostos imundos e a segurança era fortuita, talvez imaginária, onde algumas vezes a nossa tropa levou muito a sério nos cornos.

Para debelarmos uma vintena de bicudos quilómetros a coluna surripiou crescidas horas à minha airosa mocidade. Ao Estado bebeu centenas de litros de gasolina, e só lhe não gastou balas porque o diabo andava mesmo desatento.

Foi sobre aquele rebuliço de estremecida viagem, quando o sol mais queimava no vasto céu de África, que impiedosamente me atiraram para aquele canto, no mais perigoso e arriscado dos ofícios. Ali me botaram com um punhado de negros soldados vis e um malicioso soldado branco de merda e, porque não era visivelmente aquela a minha vocação, ali fiquei a roer as unhas até ao sabugo, enquanto a coluna tornou a Bula, sem que me não tenha antes despedido, com um estreitado abraço que me torturou o coração, do cortês que me patrocinou e me deixava em maus lençóis, naquela que era a mais violenta guerra que Portugal sofria em diversas frentes. Mas ele ia regressar à Metrópole.

Que inveja!

A Companhia do “Ferrobico,” reputada na Guiné – ali brotou a frase: “siga a marinha” – decompunha-se por destacamentos: Changue, e a ténue picada ia, levando a Unche, que bebia no rio Mansoa e, por distinto e enganoso atalho, arribava-se a Manga.

Até pouco antes da minha chegada, a Companhia dali teve como comandante o capitão Gaspar e foi aquele famoso que, já “apanhado pelo clima,” arrogou defrontar as gordas patentes de Bissau, rabiscando com a cegueira das suas mãos que, por causa das chuvas, não havia condições para se puder espigar no seu indefeso e quase submerso quartel, finalizando com ironia: “siga a marinha!” O recado tresmalhou-se até à rádio e no “PIFAS,” programa de informação das forças armadas, escutado por milhares, foi difundido ao ponto cómico de todos exclamarem, por tudo e por nada: “siga a marinha!”

Foi o incómodo capitão entrementes promovido e era o então major Gaspar nos consoláveis gabinetes de Bissau.

Viva o luxo!

2 comentários:

  1. Ainda bem que voltou com a continuação das suas histórias. Nada de preguiça neste ano de 2010 que desejo lhe seja muito feliz.
    Um beijo
    Graça

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  2. Grato pelo seu incitamento. Asseguro que não me vou deixar apanhar pela preguiça... até que ela me pegue de novo.
    Bom! Brincadeiras à parte: Calhou que fui operado e tudo me correu de feição... mas o efeito da anestesia proooooooooolongoooooooooou... é verdade.

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